Por que voltar a Protágoras?

Protágoras de Abdera

Estava lendo desinteressadamente “A Concepção Marxista de Estado: uma contribuição para a diferenciação entre os métodos sociológico e jurídico” do Max Adler, que é uma resposta a um ensaio do Hans Kelsen chamado “Socialismo e o Estado” em que muitas críticas do jurista ao marxismo estão melhor elaboradas em um livro posterior chamado “A Teoria Comunista do Direito”, que já tive a oportunidade de ler e possui tradução para o brasileiro. Eis que em uma parte do livro me deparo com o Adler comentando que Kelsen associa um pensamento de Marx ao de Protágoras o que fez automaticamente voltar minha necessidade de expressar os meus achados e impressões sobre o que consegui extrair de minhas pesquisas sobre o sofista.

Platão e Nietzsche: aristocratas deturpam Protágoras, um democrata.

Platão cria um “Platágoras” no Teeteto, para dotar o relativismo de Protágoras de um individualismo tosco e obsceno, que o próprio Platão confessa ser uma deturpação descarada ao descrever Sócrates, no mesmo diálogo, tendo uma crise de consciência por estar atribuindo ao sofista um pensamento tão vulgar quando ele não está mais vivo para se defender.

O Sócrates de Platão, então, “encarna” Protágoras e se defende, mostrando que o sofista fazia distinção entre melhor e pior, no que concerne à formação de conhecimento, de modo que o fato de a construção de um juízo individual de verdade passar necessariamente pelas percepções e sensações do próprio indivíduo, não significa, em última instância, que não existam consensos de verdades mais ou menos precisos, mais correspondentes aos fatos, melhor elaborados, mais confiáveis, mais fortes.

Quando pensamos na razão pela qual Platão deturparia o pensamento de Protágoras para logo após mostrar que sua interpretação de tal pensamento é equivocada, algumas hipóteses surgem, sendo certo contudo que não conseguiremos jamais entrar na cabeça de um ateniense que escreveu há 2.400 anos. Especulando, portanto, imagino que um dos motivos possa ser porque o pensamento de Protágoras é sim, deturpável, e um exemplo relativamente recente é o de Friedrich Nietzsche, no texto a “Verdade e Mentira no sentido extra moral”.

Nietzsche é o filósofo mais estudado, amado, idolatrado e querido da intelectualidade brasileira, um verdadeiro coach da filosofia que prescreve uma filosofia de vida vitalista, mítica, irracional, poética, dionisíaca, sensorial, individualista, afirmativa, aristocrata, acima do bem e do mal, além-homem, mas que possui ódio de socialistas: que ficam insistindo em jogar a realidade na cara de gente privilegiada e parasitária. Estava preocupado com as transformações sociais e da perda de privilégios da classe dominante (“aristocrática”) pela luta e conquistas dos movimentos socialistas, na época em que escrevia. O filósofo celebridade te ensina a formar um escudo de irracionalismo, pedantismo e falta de vergonha na cara (aidos), para continuar vivendo no espetáculo e na ideologia das classes dominantes capitalistas, seja para desfrutar de sua decadência ou manter a consciência tranquila com o aniquilamento e opressão de ativistas sociais (é preciso matar a razão e a verdade, bem como pensar apenas no próprio umbigo).

“Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral” de Nietzsche, é um texto maravilhoso, cheio de acertos (sim, Nietzsche foi uma pessoa abjeta que tinha bastante conhecimento, criticas e pontos de vista bastante interessantes), deboche engraçado logo no início, em forma de gênesis bíblica, da prepotência da humanidade diante da grandeza do universo e das limitações óbvias de seu conhecimento, bem como a consagração e a reafirmação do “homem medida de todas as coisas” de Protágoras, para rebater Kant e, principalmente, Platão e o cristianismo (que Nietzsche com certa razão considera um Platonismo para as massas).

Todavia o Protágoras que Nietzsche encarna, por acaso, é o Protágoras da defesa de Sócrates do Teeteto, ou o Protágoras humanista, democrata, que antecipou o zoon politikon de Aristóteles em mais de 100 anos, no mito de Prometeu, no diálogo homônimo de Platão?! É o Protágoras esgrimista dos debates públicos, da retórica, do logos como a arma humana, da anchinoia (astúcia da alma)?! Não, o Protágoras de Nietzsche é o Platágoras individualista e relativista tosco, para o qual não há diferença qualitativa de “verdade”, seja entre humanos ou bichos, de modo que cada um tem sua verdade e suas sensações individuais e a vida que vale ser vivida é aquela em que você abraça seus sentidos e renega a razão, vivendo no seu mundinho individual, nas suas sensações e percepções, sendo mítico, afirmativo, se achando aristocrata e só adorando uma divindade que dance.

Peguei pesado com Nietzsche, que era materialista, heraclitiano, ateu, sabia o valor da história e, como todo relativista, tem sua parcela de acerto, mesmo que seja apenas um pouco quando se passa dos limites e se mergulha no irracionalismo. Mas posso me dar ao luxo de atacar o filósofo, pois há uma legião de fãs para defender e afirmar que eu não entendi, não li, que é difícil demais de entender alguém tão genial, amoroso, querido e maravilhoso como o maior filósofo de todos os tempos.

Mas voltando ao que interessa, Nietzsche odiava Platão e o associava à decadência do pensamento grego, mas o que vejo em comum nos dois? Ambos são aristocratas e odeiam a democracia. Ambos, portanto, tendem a deturpar Protágoras, o primeiro teórico da democracia pelo que se tem notícia. Platão talvez por entender que a virtude é uma característica de poucos, pois a virtude é, para Platão, sabedoria, portanto pertencente aos que nascem filósofos e que deveriam governar, opondo-se à ideia de que a virtude possa ser ensinada socialmente em uma paideia, como defendia Protágoras.

Já Nietzsche também sente a necessidade de deturpar seu pensamento, pois a razão, o logos, discurso público, consenso social, são coisas que fortalecem a democracia social e permitem maior organização aos malditos socialistas que almejam derrubar o mundinho aristocrático nietzschiano. O irracionalismo é preferível à razão, pois essa última faz com que os “ressentidos”, “mais fracos” imponham a sua moral negativa aos “mais fortes”, aprovem suas leis (restrições aos melhores) e gera igualdade (Cruzeeeesss! Socorro! Imagina o pavor de Nietzsche) acabando com o melhor dos mundos que uma sociedade segregacionista pode propiciar: que a grande maioria seja explorada para sustentar os privilégios dos excepcionais, bem aventurados, afirmativos, míticos, aristocratas.

Voltando ao Adler… Mas também Protágoras

Pois bem, estava em uma parte em que o Adler ressaltava uns trechos da crítica do Kelsen em que entendia o conceito de emancipação de Marx, como uma libertação individual, no aspecto político e econômico. Adler explicava que não (com total razão), que a ideia socialista de libertação em Marx diz respeito à superação de um vínculo histórico específico por meio de uma nova ordem social, de modo que a emancipação não é possível como um ato individual de libertação (emancipação política), mas apenas sobre uma base societal.

Nisso menciona Adler a frase do jovem Marx:

“A essência humana é a verdadeira comunidade da humanidade”.

Marx afirma isso no texto “Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”. De um prussiano.” disponível aqui

Kelsen identifica tal afirmação de Marx com a célebre frase de Protágoras de que “O homem é a medida de todas as coisas”.

Max Adler em sua resposta a Kelsen afirma que embora haja realmente semelhança, a essência humana de que Marx fala não é a do ego soberano do individualista, como atribui ao sofista, mas sim a essência do gênero humano, conforme a concepção de Feuerbach. Ou seja, a essência humana como fato sociológico fundamental em que o indivíduo, em todos os seus processos aparentemente individuais (pensamento, sentimento, vontade), é determinado historicamente pelas relações sociais, sua comunidade.

Achei isso muito interessante, pois lendo alguns especialistas em sofistas, em Platão e algumas teses de doutorado estrangeiras o que encontrei é que essa frase do “homem medida” de Protágoras é tudo menos óbvia, ou significativa em absoluto de uma visão individualista. Há, sim, muita gente de peso na filosofia que defenda que a frase se aplica ao homem entendido como sociedade humana (no caso a polis, mais especificamente) ou nos dois sentidos, tanto no aspecto individual quanto o gênero humano em determinada polis.

É isso que vou mostrar apresentando em uma próxima postagem uma tradução do mito de Prometeu no diálogo de Platão chamado Protágoras. Já apresentei anteriormente o mito dos primeiros homens de Diodoro da Sicília que guarda alguns pontos de encontro, visto que é atribuído à Demócrito, que foi mentor ou trocou conhecimentos com o Protágoras.

No mito de Prometeu, atribuído a Protágoras, vamos observar vários elementos interessantes que reforçam a ideia de que o homo mensura é condizente com a noção de escolha pelo melhor, em seu relativismo, e voltada para um ambiente democrático.

Trata-se de uma concepção humanista, que concebe a moralidade como uma preocupação exclusivamente humana e rejeita a causalidade divina ou intervenção em assuntos humanos. Ocultado em seu mito (lembremos que foi expulso de Atenas acusado de ateísmo), expressa também suas concepções naturalistas formulando uma espécie de teoria darwinista embrionária (suas alegorias dão conta de uma seleção natural das espécies, desenvolvimento de armas naturais, cascos, garras, etc., como meio de sobrevivência).

Ao contrário do que imaginavam Kelsen e também Adler, Protágoras e seu homo mensura, podem muito bem guardar um caráter “universal” (societal, cooperativo ou convencional), visto que em seu mito de Prometeu ele deixa claro que apenas a razão não é suficiente para os homens se associarem e constituírem cidades, precisaram desenvolver aidos (vergonha; pudor) e dike (senso de justiça), uma disposição inata e distribuída igualmente a todos os homens (olha aí a possibilidade de a virtude ser ensinável e o caráter democrático que dota todos os homens da capacidade de cooperar e governar, não apenas uns poucos iluminados).

Protágoras, portanto, concebe que a humanidade só consegue prevalecer, sobreviver, quando consegue cooperar e viver em sociedade, sua intenção não é enfatizar a individualidade, mas sim defender o comum e uma formação social das pessoas para a democracia.

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Escrito por @sirius