A Farsa da Ditadura da Maioria
Engendrado por inimigos da democracia, o constructo da “ditadura da maioria” persiste como fundamento de uma sociedade cada vez mais tecnocrata, autoritária e oligárquica.
Desde Platão, passando por John Adams, Tocqueville, Stuart Mill, Lord Acton, etc., a democracia é acusada de ser inconsequente e vulnerável, além de oprimir as minorias por meio de uma pretensa tirania das maiorias.
Para começar, precisamos entender a formação da democracia e quais os seus fundamentos.
O consenso historiográfico nos indica que desde a primeira experiência democrática, por volta de 508 a.C., na cidade-estado de Atenas, tal como implantado pelas reformas de Clístenes, havia o sorteio de cidadãos para ocupar cargos governamentais (para exercer funções administrativas e judiciais) e a participação de todos os cidadãos elegíveis em uma assembleia legislativa nas votações ou deliberações que estabeleciam as leis da pólis.
Apesar de a democracia ser “o governo do povo” ela não se confunde com a oclocracia, governo das massas. A primeira relaciona-se à participação dos cidadãos na tomada de decisões e elaboração de leis, a outra à imposição da vontade das multidões sobre a lei.
A democracia pode ser compreendida como uma forma de governo que se opõe à autocracia (poder concentrado nas mãos de um indivíduo, seja um monarca ou tirano) e ao governo de poucos (aristocracia ou oligarquia).
Por ser a antítese de um poder concentrado e autoritário a democracia tem por principal fundamento a liberdade, a oposição à opressão.
A igualdade na democracia não é e nunca foi uma ilusão de que as pessoas sejam substancialmente iguais, mas a afirmação do princípio de que nenhum cidadão é mais ou melhor que os demais, de modo que possa estar autorizado a impor a sua vontade e arbítrio sobre a sociedade.
Importante dar um contexto histórico e ressaltar que por cidadão não se está falando de todas as pessoas, visto que na sociedade ateniense, misógina e escravocrata, não eram considerados cidadãos os escravos e as mulheres, além dos estrangeiros.
Transcrevo aqui alguns trechos do famoso discurso fúnebre em que Péricles foi escolhido pelos cidadãos para falar, tal como narrado por Tucídides, que expressam as características incipientes daquela democracia:
Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos, ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo dependem não de poucos mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. (...) Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos. (...) Somos amantes da beleza sem extravagâncias e amantes da filosofia sem indolência. Usamos a riqueza mais como uma oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós não há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la. Ver-se-á em uma mesma pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas e públicas, e em outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios não se verá falta de discernimento em assuntos políticos, pois olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil; nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação. Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que pretendemos correr, para outros homens, ao contrário, ousadia significa ignorância e reflexão traz hesitação. Deveriam ser justamente considerados mais corajosos aqueles que, percebendo claramente tanto os sofrimentos quanto as satisfações inerentes a uma ação, nem por isso recuam diante do perigo. (...) nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda Hélade e, segundo me parece, cada homem entre nós poderia, por sua personalidade própria, mostrar-se autossuficiente nas mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade. E isto não é mero ufanismo inspirado pela ocasião, mas a verdade real, atestada pela força mesma de nossa cidade, adquirida em consequência dessas qualidades. (...) Já demos muitas provas de nosso poder, e certamente não faltam testemunhos disto; seremos portanto admirados não somente pelos homens de hoje mas também do futuro. Não necessitamos de um Homero para cantar nossas glórias, nem de qualquer outro poeta cujos versos poderão talvez deleitar no momento, mas que verão a sua versão dos fatos desacreditada pela realidade. Compelimos todo o mar e toda a terra a dar passagem à nossa audácia, e em toda parte plantamos monumentos imorredouros dos males e dos bens que fizemos.
Vemos, portanto, que a democracia, ao contrário do afirmado por detratores, não é uma forma social que despreza a filosofia, o conhecimento, o respeito às leis, para a satisfação de desejos irracionais de massas descontroladas. Pelo contrário, exige o debate, a participação ativa e a reflexão de todos os cidadãos. Nas palavras de Péricles, parece mais próxima de um regime social onde há o exercício da racionalidade do que alguma aristocracia em que a deliberação política e a elaboração de leis seja tarefa apenas de alguns poucos sábios.
A democracia vai se desenvolvendo na história com o objetivo de prover a sobrevivência interna e externa do grupo social, incorporando inclusive os ideais do iluminismo, no século XVIII.
Rousseu em “O Contrato Social” entendia a democracia como regime ideal, que consistia no seguinte:
(...) uma forma de associação que defenda e proteja qualquer membro a ela pertencente e na qual o indivíduo, mesmo se unindo a todos os outros, obedeça apenas a si mesmo e permaneça livre.
Assim, a democracia possui um caráter legalista. Nela, as regras, ou leis, determinam os procedimentos para a tomada de decisões que vinculam o conjunto dos membros.
Existe o reconhecimento da pluralidade, de modo que da maioria se presume uma ou mais minorias, igualmente protegidas, com liberdades individuais inalienáveis
Norberto Bobbio aponta o seguinte:
Estado liberal e Estado democrático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais.
No caso acima, cabe ressaltar, Bobbio se refere ao liberalismo político (liberdades individuais: vida, opinião, expressão, associação, reunião, etc.) o que se difere, por exemplo, das ideias do liberalismo econômico (laissez faire) extremado defendido por ancaps e neoliberais (apenas para esclarecer).
Portanto, como a democracia significa a oposição a todas as formas de governo autoritário e tem por base a liberdade e a pluralidade, ela necessariamente resguarda as liberdades individuais, não sendo possível que contra as regras do jogo democrático seja possível utilizar uma pretensa ditadura da maioria para agredir as liberdades das minorias.
Quando vemos um líder que foi eleito e autorizado pelas próprias regras democráticas a presidir um país (vocês devem ter em mente um exemplo recente), dizendo que “As minorias têm que se curvar para as maiorias” ele não está defendendo uma regra democrática, está se arvorando de uma autoridade que não possui (porque contraria a Constituição democrática à qual está submetido, onde se assegura liberdades individuais às minorias) e buscando ter um poder em contrariedade à lei, contra as regras democráticas portanto, buscando respaldo nas massas, como se fosse um tirano empossado por uma oclocracia.
A democracia não permite que um tirano se julgue detentor do poder das massas e aja em contrariedade à liberdade dos indivíduos e minorias, principalmente em uma democracia direta.
Na democracia as leis funcionam como um elemento que restringe o poder de autoridades estatais onde são erigidas instituições que atuam na guarda das liberdades elementares dos cidadãos.
Outras características provenientes do fato de a democracia ser a antítese da autocracia é a exigência de transparência e publicidade em suas manifestações, como verdadeiro regime da visibilidade do poder, não comportando o segredo no que se refere às decisões que afetem a coletividade, bem como seu caráter anti elitista até no que concerne às decisões técnicas.
Como bem observou Jacques Rancière, em “O ódio à democracia”, esta não se curva a qualquer autoridade, possui um caráter de ceticismo e, porque não, insolência, de modo que mesmo que um regime democrático nos tempos atuais exija uma administração técnica, tal administração não proferirá decisões herméticas: os especialistas precisam submeter os fundamentos de suas decisões técnicas ao escrutínio público, para que a sociedade se informe e eventualmente debata, questione e controle a atuação desses agentes.
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Escrito por Sirius